Seu David, 57, passou 40 anos nas ruas do
Recife e se revelou profundo conhecedor de música clássica, encantando
médicos e voluntários
Por
Ed Wanderley - Diário de Pernambuco
Foi nas ruas que chamou de casa que Seu David descobriu a música
clássica. Um acorde descoberto a cada esquina. Paixão capturada em fitas
K7, que carregava consigo. Quando estabeleceu 'morada' mais fixa, ao
redor do Camelódromo e do Mercado de São José, no centro do Recife, viu a
coleção crescer. Os vinis, recebidos por amigos comerciários da área,
admiradores do "homem da Enciclopédia Barsa". Toda lida! David Wilibaldo
de Luna, aos 57 anos, vem se acostumando a impressionar quem acompanha
sua passagem pelo mundo. Ex-morador e artista de rua, ele ocupa o leito 2
da Casa de Cuidados Paliativos do Hospital Pedro II, no Recife. Onde
deveria ocupar-se apenas em combater o câncer, que agarrou seus pulmões e
tomou-lhe os ossos, deu aulas de música, cultura, história mundial
mesmo a quem tinha como cargo apenas dar-lhe conforto para esperar o
inevitável. Com simplicidade, transmitiu seus valores, conquistando
outros pacientes, voluntários e equipe médica. O retorno veio em forma
de reconhecimento. Depois de ganhar a primeira exposição de seus quadros
e o primeiro bolo de aniversário de sua vida, Seu David empresta seu
nome a uma composição original, no estilo clássico, a exemplo de seus
ídolos Vivaldi, Beethoven e Strauss. Ontem, sentou na primeira fila para
ver o concerto "David Davida", realizado por integrantes da Orquestra
Sinfônica do Recife, em sua homenagem, no hospital que fez de última
casa.
O estudo, concluído apenas até a segunda série, e a falta de teto desde
os 17 anos não impediram a qualidade de sua apreciação. A cada movimento
de violoncelo e reverência do clarinete, uma reação com as mãos, dedos
em riste, acompanhando a assinatura sonora de cada estrofe. O ouvido,
apurado, foi acostumado a esse tipo de composição por ficar dia e noite
grudado ao rádio de pilha sintonizado na Rádio Universitária, desde
1974. Os olhos, perdidos numa viagem própria e pessoal, davam margem
ainda maior ao largo sorriso aberto ao final de cada canção. "Esse é
Chopin. Um dos 63 grandes compositores mundiais", identifica, com
naturalidade. "De brasileiro mesmo, só Villa-Lobos e Carlos Gomes",
completa.
Há quatro meses, Seu David rejeita o próprio fim,
ignorando-o. Não fala da doença, desenvolvida pelos anos em que fez de
melhor amigo, um ou outro cigarro. Foi um dos 17 em cada 20 fumantes que
sucumbe às consequências maliciosas da nicotina. Sabe que engrossará as
estatísticas que, friamente, revelam que 12% de todos os homens acabam
padecendo do mesmo tipo de câncer com o qual tem que lidar todos os
dias. A dor, tenta esquecer, com o auxílio, a cada duas ou mais horas,
de doses cavalares de morfina, 36 vezes superiores às ministradas em uma
cirurgia comum. O ar, mal puxa sozinho. O barulho do respirador passa a
lhe fazer companhia nos momentos de inconvenientes silêncios que sempre
convida a repensar as escolhas de uma vida marcada por privações que
lhe foram impostas.
Seu David é apenas um dos rostos que ignoramos todos os dias nas ruas.
Um pernambucano, da cidade de Escada, zona da Mata, entre os pouco mais
de 440 mil que não dispõem de um teto fixo ou refeições regulares. Ele
dá nome e forma a um abandono. Um preconceito que dá como certo o
destino de toda uma população: sobreviver sem educação ou qualidade de
futuro. É também uma exceção. Não pela inteligência que impressiona ou
opinião sobre política e economia que desafia a compreensão, mas por ter
nome e imagem reconhecida e tratada enquanto gente em uma realidade
desumana que mal permite olhar o próximo.
Ouça parte do Concerto
AQUI
O concerto "David
Davida" apresentou 10 clássicos e a original, que dá nome ao espetáculo.
Foram 70 preciosos minutos que dão novo significado a uma vida de 20.716
dias contados. Quando deu entrada na unidade de saúde, o artista 'não
tinha jeito'. Lhe restavam poucas semanas. Cento e vinte e seis dias
depois, assume como meta, chegar ao aniversário: dia 3 de novembro. Com o
otimismo sorridente que cativou a todos, sem querer, se faz exemplo.
Por insistir em desafiar a morte, Seu David ensina a viver...